perdi-me de mim algures.
talvez na mesa do café da manhã ou no quiosque onde me rendi às notícias.
não sei. o certo é que já não sei aonde me pus.
comigo foram nas algibeiras os últimos versos que sabia criar,
foi-se um fragmento de inspiração preso ao porta-chaves que me deste.
sei que ainda perdi aquele lenço que me ofereceste. aquele bordado com a eternidade.
agora sinto-me vago,
permanentemente temeroso que se agudize o meu vazio.
falta-me tanto de tudo do tudo que conhecia
falta-me a mágoa necessária para escrever,
a simplicidade de palavras maduras de sentimentos por expandir.
faltam-me lágrimas para retirar o insonso do meu poema de hoje
borbulhando numa panela faminta de criatividade
falta-me a minha musa, qual pintor rabiscando na tela o seu modelo,
adicionar-lhe negro luto e recarregar os contornos da melancolia,
encarcerando metáforas que me fazem falta.
falta-me a abstracção do álcool e a distracção do fumo.
mais do que nunca preciso concentrar-me nas rimas da caneta,
no ondancear de uma esquina da margem da folha
falta-me o silêncio, o nada da voz e do grito.
quero apenas aspirar a noite vestida de escuro,
apagar-lhe as estrelas e o luar, sussurrar-lhe ao ouvido a correnteza de um Tejo.
falta-me ainda um último sonho contigo.
aquele que ficou adormecido no emaranhado dos teus cabelos,
incinerado nas fagulhas daquelas duas tranças encarnadas
falta-me coragem de te dizer que hoje não sei o que te escrever,
embora seja urgente o dever de versejar
para que não me reste o insuportável vácuo de me assumir.
falta-me ter falta de algo
que justifique o que sinto que me falta
para justificar a ausência da palavra em mim
preciso apenas que o tempo não acabe ainda,
que o vento sopre ainda, que o sol renasça amanhã. preciso apenas disso.
amanhã já poderei acrescentar um outro sopro ao vento e um novo raio ao sol.