Quarta-feira, 28 de Julho de 2004
Rechonchudas gotas de água caíam, anunciando o verão húmido. Faziam a vidraça chorar em pequenos carreiros de água doce, que S. Pedro, gratuitamente nos enviava, perante os meus olhos que tentavam perscrutar o mundo através dos olhos foscos da casa.
Avó Graziela, se afundava sua bunda na poltrona coçada de velha, mas que como sua ocupante, resistia sabiamente a rudes do tempo. Esse tempo que não atempava sua partida daquela carcaça, parecia já com tempo de validade expirado. Quase que vavó e a poltrona se disputavam quem se durava mais às vezes a dor de ver a definhes de quem amamos e amou a vida com lucidez, faz-nos pecar, desejando a sua desistência imediata deste mundo, mesmo que tal signifique herdar saudade eterna na recordação da sua existência. E era o que às vezes oculta, íntima e morbidamente desejava.
Naquela tarde molhada, quando olhei por cima do ombro, e lhe olhei mais uma vez com a ternura de quem só tem a saudade do que já partiu, meus olhos marejaram e se alagaram também. Nessa hora, ainda mais amei minha velha.
Me fez um sorriso senil, indefinido e custoso, mas persistente. Parecia mais era esgar, em que se desembrulhavam entre os seus lábios enlameados de cuspo, os dentes espaçados com e pelo tempo. Concerteza era um sorriso, não te duvides. E era sorriso de gente, como se dissesse: ainda estou presente!! Me lembrei que alguém, uma vez disse que o sonho nos torna capazes de ousar a aventura de cada amanhã . Pus fé nesse amanhã que parecia navegar num mar longínquo, e nesse ondancear, se mostrou sem pressa de chegar num porto deslongínquo.
Nesse instante infinito, meus pensamentos voaram longe. Lhe lembrei nos tempos em que pacientemente, me ensinava a arte de plantar mandioca. Escolhia os domingos da semana p´ra me levar nos caminhos poeirentos dos ensinamentos seculares, que os anos, também ensinaram à quem lhe ensinou. Na chitaca, só de sabor provado, sua língua distinguia mandioca Manuela de Rabina e de outras que a minha lembradura já não retêm e, por isso, se ressente da falta dos seus ensinamentos.
Aprendi da molhagem e da secagem que dá crueira. Essa, já bombó, quando assada, chocalhava nos nossos calções de meninos, levadas na algibeira com jinguba torrada. E a fuba?! Essa que se nasce na cadência do pilão que esmaga a seca crueira
E quando começava já a descalçar o cansaço do dia, bem tardinho, depois do afundar do sol morrente no horizonte, me sorria pacientemente e contava estórias antigas que a poeira do tempo num deixou escrita, nem sequer hieróglifo. Apenas ficaram na memória do povo, das gentes do mato que lhes preservavam estoicamente na cultura oral.
Quando a estória era a minha, e eu personagem sofrido, me confortava em seu regaço, sentindo roçar a minha face nas linhas do seu tricô nocturno e, me confortava da tristeza, enxugando minhas lágrimas de criança confusa e temente num mundo de adultos. Nessas horas lhe sabia em mim viver para sempre e, no coração dela existir gente dentro. Eu lhe sentia, ocupava trono naquele velho peito.
Inopinadamente, nessa tarde, me parei de alembrar, recolhi as asas do pensamento na gaiola da minha cachimónia. Senti força súbita de querer sorrir, mesmo que não fosse sorriso de gente alegre mas, apenas só, aquele de animar inanimado. Desconsegui. Na tentativa, misturei um falso sorriso com o salgado de uma lágrima que escorreu no rosto como as gotas de S. Pedro na face da janela de olhos foscos.
Lhe cheguei mais perto e, com a ponta do pano que lhe cobria o regaço, limpei os lábios inseguros na boca aflita por expulsar voz de gente. Lhe sorri mais firme no olhar, me agachando no seu regaço. Seu olhar era distante e vago se pondo longe, no horizonte de um outro mundo que só dela. Até parece já num tinha gente naquele corpo caduco. Meu esforço, era quase o de quem bate porta de casa vazia, e persiste em esperar milagre de ver lhe abrirem a porta. A minha espera superava a fé.
O tempo passou e só lhe se acabar dava pra ver. Parece vela que derrete perante a quentura do fogo. E aquele era um fogo que veio parecia de nada, se de amor, se de ardor de persistência, se de fagulha que o vento roubou a uma brasa num sei, mas que era fogo e que perante ele minha velha se acabava, isso era.
Parecia querer esquecer dessa vida e da lembradura dessa encarnação e, até parecia sorria com isso quando punha aquele esgar indefinido e intermitente no rosto que já só se suportava - à cada pedaço que perdia da sua memória.
E nesse passo descompassado com a vida a que se propôs, foi-se desmoronando devagar e se impôs - parecia era desejo - condenação da mente, lhe ordenando para apagar todo registo dessa vida, antes do passo compassado para outra de outro mundo, em que para essa só lhe faltava desligar do corpo.
Nessa manhã, quando lhe levei na varanda, não lhe vi sorriso no rosto careta. Depois de lhe tirar da cadeira de rodas e lhe assentar na companheira coçada, lhe senti seu olhar de outros tempos nas minhas costas. Se assustei, mas me acheguei a ela que me assentou com firmeza a mão que definhara em osso e pele. Lhe vi o olhar que pressenti nas costas. Parecia, nesse instante, vencera a desconsciência da caduqice..
Me pareceu, naquele momento, já num tinha cabelos brancos. Superara e desafiara o tempo, rejuvenescendo só para aquele instante, guardando uma última e breve lembrança de palavras e força, para expelir de si, última voz de gente para gente: a dor já passou, a brisa vai me levar comigo e você vais na recordação. Esta foi a vida que escolhi nas estrelas. É vida de se dar só, num tem nada pra receber. Te vi teu rosto no firmamento e era esta a vida em que queria me partilhar-te .
Depois do breve momento sano, se sobrepôs de novo a insanidade. Lhe vi botar de novo seu esgar, no rosto enrugado pela erosão dos anos, e adormecer docemente.
Na lentidão em que minha velha avó se aprofundava e embrenhava no seu sono eterno, parecia a poltrona coçada também se definhava e se perdia mais de cor, até se enegrecer de ausência.
Ainda hoje me ecoam as suas palavras e duvido que as ouvi na sua partida. Mas quando me agacho em frente a velha poltrona ausente de cor e sinto se levantar na varanda, brisa suave que faz esvoaçar o pano que lhe cobria o regaço, lhe vejo rejuvenescer e de novo se ganhar de cor. Nessa hora, me pergunto se a vida que vivo, essa foi aquela que escolhi nas estrelas.
in "Contos na alvorada"
Ruy de Carvalho Simões
Terça-feira, 27 de Julho de 2004
Em determinados momentos, nós, para outros, assumimos o compromisso de lhes existirmos presentes em qualquer momento quando, no âmago, sabemos que tal não podemos controlar. Mas a vontade e o desejo de realizarmos, supera a racionalidade.
Fiz-te essa promessa. Hoje abrupta e dolorosamente, aquando do teu desaparecimento, não estava lá e sei que falhei.
Resta-me acreditar na minha vontade de te perpétuar na memória e, eterna e espiritualmente, em mim viveres quase físicamente.
in " Memorizando Memórias" - Ruy de Carvalho Simões
Um casal de namorados estava em alta velocidade na estrada...
Menina: Devagar! estou com medo...
Menino: Não! é divertido!
Menina: Não é não! Por favor, estás a assustar-me!
Menino: Então diz que me amas
Menina: Certo. Eu amo-te.
Menino: Agora dá-me um grande abraço. A menina abraça-o.
Menino: Tu podes tirar o meu capacete e colocar em ti: Está a incomodar-me.
No jornal do dia seguinte havia uma notícia:
"Motorizada embateu por causa de problemas no motor, duas pessoas
estavam nela, mas somente uma sobreviveu".
A verdade é que descendo a estrada, o rapaz percebeu que os travões
haviam falhado, mas ele não queria que a garota soubesse. Ao invés disso ele fez
com que ela dissesse que o amava e sentiu seu abraço uma última vez, e a
fez colocar o seu capacete para que ela pudesse viver, mesmo sabendo que
por causa disso ele iria morrer.
Felizes os que conseguem amar com essa intensidade.
De longe essa foi uma das mais lindas mensgens que eu recebi, e a pessoa
que enviou me perguntou:
-E tu, a quem darias o capacete?
A minha resposta, sem hesitar, será: - A Paola!
Sexta-feira, 23 de Julho de 2004
Para além da genialidade e originalidade com que executou a guitarra portuguesa; a forma como universalizou essa e o fado de Coimbra; há a destacar a vertente humana que se impõe por si própria.
Obra de um "artista genial", conforme salientou o Presidente da República, Jorge Sampaio, que "em nome de Portugal" homenageou o artista "que tanto projectou o nosso país" e o "cidadão exemplar e homem bom"
É notório, em todas as declarações de pesar que, à par da genialidade apontada, é também referido "o homem bom" e "o profundo humanismo".
"Carlos Paredes é, para mim, uma referência humana e cultural, juntamente com Adriano Correia de Oliveira, representa o melhor que há de nós em termos humanos e culturais", disse o fadista Carlos do Carmo.
Por mim, resta-me dizer que "o homem dos mil dedos" ainda tocará para mim por entre as ruelas de Coimbra, pelas calçadas do mundo ... esse mundo que paredes deu a conhecer essa sonoridade portuguesa, misturada com a sonoridade do próprio mundo.
Na música de Paredes confluem várias influências segundo Vieira Nery - "mas sempre com uma matriz portuguesa", como disse o guitarrista António Chaínho.
Homem reservado e fechado, Carlos Paredes morreu hoje em Lisboa com "a tranquilidade de quem sabe que está com a missão cumprida". Adeus Paredes!
Carlos Paredes ( 1925 - 2004 )
A palavra por dentro da guitarra
a guitarra por dentro da palavra.
Ou talvez esta mão que se desgarra
(com garra com garra)
esta mão que nos busca e nos agarra
e nos rasga e nos lavra
com seu fio de mágoa e cimitarra.
Asa e navalha. E campo de Batalha.
E nau charrua e praça e rua.
(E também lua e também lua).
Pode ser fogo pode ser vento
(ou só lamento ou só lamento).
Esta mão de meseta
voltada para o mar
esta garra por dentro da tristeza.
Ei-la a voar ei-la a subir
ei-la a voltar de Alcácer Quibir.
Ó mão cigarra
mão cigana
guitarra guitarra
lusitana.
Poema de Manuel Alegre
MORREU CARLOS PAREDES, o génio da guitarra portuguesa.
Nascido a 16 de Fevereiro de 1925, Carlos Paredes cresceu numa família de músicos e aprendeu a tocar guitarra portuguesa com o seu pai, Artur, aos quatro anos, à revelia da sua que queria que aprendesse a tocar piano. O avô Gonçalo constituíu, também uma importante para o génio.
Mudou-se para Lisboa em 1934, com apenas nove anos, tendo concluído os estudos no Jardim-Escola João de Deus. Depois passou pelo liceu Passos Manuel e pelo Instituto Superior Técnico, sem chegar a terminar o curso
O início de uma longa carreira
O primeiro disco apareceu em 1957 - intitulado «Carlos Paredes» - seguindo-se uma série de bandas sonoras, até ao aparecimento do álbum «Guitarra Portuguesa», que contava com Fernando Alvim à viola.
Seguiram-se «Romance Nº 2», «Fantasia», «Porto Santo» e «Guitarra Portuguesa». O disco «Movimento Perpétuo» surgiu três anos depois, em 1971.
Chegou a estar preso durante a ditadura e durante e após o 25 de Abril tocou em vários pontos do país. No entanto só voltou a editar um disco em 1987. Antes, em 1975, Carlos Paredes toca em «É preciso um país» enquanto que o político Manuel Alegre recita poemas.
O fim da carreira
O músico e compositor conciliou a sua carreira musical com a actividade como administrativo no Hospital de S. José, em Lisboa, até à década de 90.
Em Dezembro de 1993 Carlos Paredes descobre que padece de uma mielopatia, uma doença que mais tarde o impediu de tocar guitarra.
Desde então, o génio da guitarra portuguesa encontrava-se internado na Fundação-Lar Nossa Senhora da Saúde, no bairro lisboeta de Campo de Ourique.
in "Sapo Online"
A simplicidade e ternura do homem competia ferzmente com a geniallidade do mestre que chegou a ensinar guitarra portuguesa em Coimbra, na Almedina, terra natal
O compositor e cantor Luís Cilía, que privou com Carlos Paredes, contou à TSF que ficou espantado quando chegou de Paris, altura em que conheceu o músico, e percebeu que «aquele homem genial não vivia da sua música».
Manuel Alegre destacou o «fogo dos Paredes» e o «génio singular» de Carlos Paredes.
Neste momento de dor abrasadora para um povo e uma cultura, o Governo decretou luto nacional. " Perdemos o Homem mas ficou a obra. Resta-nos esse consolo.
Que dor, que nada, que tudo ... estou no trabalho. Também só podia. Mas o meu conforto ... É QUE AMANHÃ É FIM DE SEMANA!!!
Triturado, esses, os meus desenraizamentos da condição de ser e existir-me como humano. Coagularam-se-me quaisquer correntes de pensamento chauvinistas.
O meu âmago desencarna confuso com a minha pseudo sensação em me encontrar, ainda, numa condição de ser superior.
Hoje, quase inumano, ainda conservo aspirações de consciência quando já não existo. Ainda vago, poeirento, num tempo em que já não existo, e, de mim, já nada se pronuncia. Então aonde estou e em que estranha forma me insisto esxistir?
Sou ARIRDINE - a estrela.
Domingo, 18 de Julho de 2004
"Deus não é mais que o próprio homem elevado a infinitude".
"Não há caos maior do que parir uma estrela que dança"
Nietzsche
"O sujeito da divindade é a razão, mas o sujeito da razão é o homem".
Feuerbach