Foto: photo.box.sk
sinto-me ausente dos sons em berros de formatura
impondo ritmos aos corpos serpenteados de suor.
recolhi-me às escadas da vontade da letra.
a letra sentou-se do meu lado, escreveu-me um poema:
acrescentei um lábio ao dedo, afoguei-o num toque da língua
e escrevi num dos degraus: "tenho descosido o lado esquerdo da alma.
o corpo? dei-o a um mendigo que tremia com o frio da minha dor".
depois, olhei a fuligem no rosto do indicador e vi o reflexo do fundo do meu vazio.
estou preso ao que mais temo das minhas extremidades...os meus passos.
por mais que eu me puxe, sempre mergulho na poeira da caminhada.
sempre que evito o escorregar de uma decisão,
sempre sou muito mais mim de encontro à escuridão.
arranho a solidão que me busca. a busca arranha a solidão.
escorrendo nas paredes de cada pequeno calar que espreita à cada gesto
sinto-me um espectador do mundo. desconheço onde estou,
mas sei que o mundo cambaleia por baixo do parapeito da minha janela.
ali vai a procissão da distância! "lá vai o abraço... logo atrás vai o beijo!
olha a ternura!... do outro lado vem a saudade.
o meu amor vai com ela de braço dado.
quanto me faltou dizer-lhe que ela me faltava e que eu sei que lhe faltei?!
a verdade é que a vida corre...e eu o passageiro errado na berma do carril do vagão.
sendado na pena de um sopro de vento, flutuo um aceno na lentidão do ar.
plantei um panfleto no canto da "boca" de uma pomba. partiu-se o caule.
escritos no verso das minhas unhas riscadas pescam pedaços de olhares,
simples diagonais remendadas de branco com histórias do sussurro do abrupto
07/07/2006
07h22m
Ruy de Nilo (Alfornelos)
Foto: Autor desconhecido
hoje vesti o fato sombrio. uma linha solta no pulso chamou-me soturno.
aceito-o, mas prefiro estar perto da minha última morada e escorregar num tombo abafado.
é-me mais cómodo para o passo garantir um lugar carcomido.
espero-a com a virtude dos pacientes,
muitas vezes tentado pelo vício dos ansiosos, é certo.
todavia, enquanto isso, toda a vida que sobrevier ao meu corpo
será apenas uma condescendência da morte.
essa, a minha poesia,
é fruto de uma estranha saudade
que nem eu sei como chegou, como entrou nem porque ficou.
sei apenas que da avenida vi-a assomada à minha janela apregoando nostalgia.
porquê?! não sei. nada disse, ninguém perguntou, nem sequer neguei.
ela é o abismo entre o rastilho amadurecido e o ventre vazio de gente,
que estranho grito exalam as minhas impressões digitais
para que um tal fulano pincel,
desconhecido de qualquer proximidade da recordação minha,
me capte a alma com a objectiva da sua tela,
montando no seu cavalete alado o portfolio da minha alma?
à cada trote, chiava o tripé cansado de tantos duelos com tantos modelos
à medida que sucediam paletas desafiando a perfeição cozida em fornos a lenha.
Dessa fornalha saíam curvas desalinhadas e rectas desaprumadas;
e por mais veloz que fosse o pente,
acordava sempre atordoado na curvatura da nuca.
Dessa fornalha saíam pães esfomeados com ossos à mostra a roerem-nos a côdea;
saíam mestiços sem pai nem mãe, nem pátria que os parisse;
saíam os negativos das cores do arco-íris autenticadas com tonalidades de escuridão;
saíam estradas descalças com os calcanhares a derraparem na curvatura dos passeios;
os tais passeios do progresso,
impregnados de mendigos esperando no final do mês um prato de esmola.
saíam cadáveres dos seus casulos,
cada um enfatuado com a sua cruz debaixo do braço,
e por menos um ano de vida, recebiam de troco o prolongamento de um suspiro final
em busca de uma sandes de silêncio para filhos há muito empanturrados de nada.
ao domingo saíam à rua as prostitutas em fila indiana com archotes,
lambendo uma labareda colhida lá na última migalha da chama do poente
e procuravam de porta em porta fregueses que as contestassem.
Dessa fornalha saíam cachorros que miavam, pássaros sem asas
saídos das cartolas de mágicos com números rotos de podres.
de uma vez, na noite do circo dos homens,
uma assistente foi trespassada por uma espada enferrujada.
ouviu-se ainda o berro da espada
no segundo em que se partiu.
da assistente,
só o pulso lhe ouviu um último suspiro.
ouve quem dissesse que de tanto ancorada,
engordou e não coube na caixa.
“Ouvi dizer que algumas até pagavam um centavo por uma fábula”, segredou-me uma vez o porteiro.
“Que exagero...!”, disse para o meu confidente.”É verdade Sr. Correia!”
“Então pense comigo.Com tanta ventania, o normal não seria que encontrasseem miolos arrefecidos?!”
“A verdade é que não encontra. Nem vestígios de gritos, nem vestígios de lágrimas”
ou sequer restos de um toque. Nada! O que me diz a isso?!”
“Esses é que sabem tudo e compram tudo. Até o dinheiro!”, disse-lhe.
escorregando a última mão no final do corrimão do rés-do-chão, despedi-me.
“Adeus. Até logo! Que alguém o proteja!”
Dessa fornalha, chuviscavam labaredas de bocas abertas,
sorvendo abelhas nas tabernas das trincheiras.
gritavam "hurras" hasteando os punhos cheios de bandeiras embriagadas.
Desta fornalha saíam os atrasados do inferno,
algemados por baionetas por trás de grades feitas com espingardas.
repreendi a bala e espreitei-a no fundo, entre os dedos.
Desta fornalha saíam os candidatos ao purgatório,
contando passo a passo os ponteiros da vida de uma madrugada,
esperando tirar a primeira senha que os levará para o longe do longe da fundura do nada,
em que os vitoriosos são os que alcançam um nada mais vazio que os atrasados
Desta fornalha saíam os operários das minas do inferno,
acotovelando-se para experimentarem a fobia da claridade.