Foto: Guilherme Limas
já não tenho o rito de encarreirar palavras
nascê-las em mim e faze-las navegar por rios de tinta.
já não tenho a nostalgia a destapar uma pestana do crepúsculo
desfolhar o entardecer entrançado entre a geometria de sombras de persianas velhas
encravadas nas pálpebras das janelas de um casebre
já não tenho o caiar do cheiro nas paredes graffitadas de relentos
mostrá-las minhas, confessá-las tuas (ainda é-me difícil não falar de ti)
transparecer o mesmo olhar numa outra vida
gritar por outra voz o mesmo grito
amachucar a alma para que me caiba noutro corpo
amordaço a vida para que não me doa além, num outro passo.
sem mares nem ares que me corroam… esvoaço.
livre na gávea de um mastro sobre ondas de veludo
gritando para dentro de mim um sopro que não me doeu ali.
o rito de bajular a vida é o mesmo de adejar a liberdade do aceno
se ao menos hoje ainda te pudesse ter mesmo que aos pedaços,
por frestas a borboletares-me na liturgia das estações do ano.
se ao menos hoje não paralisasse no Inverno em que partiste,
e ao menos o gesto parasse e estagnasse naquele último beijo
eu incrustaria o momento no tempo para que não me doesse um ano inteiro.
Palavras vindas de um sopro ao ouvido
que boiaram leves como um beijo,
quietas como uma recordação
numa manhã aposentada no entreposto de uma vida.
Toca-me enquanto ainda vivo.
RdN
29/04/2008
Cidadela
10h48m